Você abre o Whatsapp: bate-boca no grupo da família; você entra no Facebook: a timeline repleta de textões se apunhalando – um ataca com “biscoito não é bolacha”, outro revida com “tripofobia não existe”; cada manchete nos portais de notícia arrasta uma multidão de comentaristas-pugilistas que se esmurram – cada um aproveita da “liberdade de expressão” para agredir mais o possível o outro.
Digamos que você já se cansou dessa “rinha de expressividade” e quer espairecer a mente: sai da internet e vai a um museu – que pena! Você não esperava dar de cara com uma manifestação, o mesmo “arranca rabo” com uma equipe gritando “pedofilia!”, enquanto a outra responde com “censura!”. E você, que só queria fruir arte, vê-se na obrigação de participar da polêmica.
Afinal de contas, isso é só uma polêmica passageira, ou a liberdade de expressão realmente tem seus limites na cultura? Podemos usar dessa liberdade para expressar o que quisermos? A melhor forma de “consertar” excessos é com a censura?
Leia nesse post um apanhado dessa discussão no presente e uma revisão do passado, adiantando essas questões para debates futuros!
Em toda discussão complexa, o primeiro passo é compreender o que se está discutindo. Então, vamos por partes: o que significa liberdade de expressão? Certamente você sabe que é o “direito de se expressar” – mas não para por aqui!
Na atualidade, a liberdade de expressão é entendida como um direito humano – isto é, é um dos requisitos para ser tratado dignamente como um ser humano. Esses direitos são considerados como parte do que nos torna humanos, por isso são inalienáveis: “retirar” isso de alguém é tratá-lo de modo sub-humano.
Dessa forma, entende-se que a expressão é um dos traços essenciais do ser humano: toda e qualquer pessoa se expressa, de uma maneira ou outra – através da fala, da escrita, da criação artística e também pela comunicação não-verbal (como gestos, comportamentos e vestimenta). Nos períodos de governos totalitários, como nas ditaduras, um dos maiores traumas é a proibição a se expressar e o medo de ser pego pela vigilância – sempre espionando as conversas, mesmo domésticas.
Não ter liberdade para se expressar é traumatizante justamente porque a expressão faz parte da condição humana. É sufocante viver uma realidade que deve ser ignorada porque, afinal, é proibido falar sobre ela. Viver sob essa condição acaba tornando qualquer um paranoico e depressivo com o tempo. Muita gente acaba por nunca conseguir superar isso – a exemplo de quem não consegue falar sobre os períodos que viveu sob ditaduras ou em campos de concentração.
A história nos ensinou que é inconcebível viver sem liberdade de expressão. Por isso, vamos conferir como a liberdade de expressão se tornou considerada parte essencial da experiência humana, até ser integrada na criação dos direitos humanos. Confira a seguir!
Como a expressão é parte da condição humana, desde o surgimento do ser humano a liberdade de expressão foi uma condição de vida. Houve momentos em que se experimentou mais liberdade, enquanto em outros a organização da sociedade não o permitia. Exemplo disso era a vida no Antigo Egito: apenas uma minúscula parte da sociedade tinha acesso à escrita, o que fazia até o “idioma” falado nas castas altas ser diferente do das baixas.
Um dos primeiros momentos em que a liberdade de expressão foi considerada inalienável foi na república da Grécia Antiga. Em Atenas, todos os cidadãos tinham direito a se exprimir livremente na praça pública – o único problema é que as pessoas consideradas “cidadãs” eram poucas: homens, ricos, nascidos na Grécia e não-escravizados. Na república de Roma isso foi aprimorado, mas, ainda assim, havia várias restrições à expressão da população, principalmente em relação à política.
Durante o feudalismo, a teocracia e o obscurantismo (quando algumas crenças e superstições valem mais que o conhecimento amplo e debatido) agiam como uma espécie de censura; isso só mudou com o advento do Iluminismo, que propunha a difusão do conhecimento. Com a crescente circulação de ideias e questionamentos, chegamos à Revolução Francesa, na qual se consolidam direitos presentes em documentos como na Magna Carta inglesa e na Declaração de Virgínia.
Nesse período, muito do que se entende por direitos inalienáveis já se estabelecia – algo que chegou a motivar as revoluções Russa e Mexicana; ainda assim, um horror abominável se desenrolou até que se visse a necessidade suprema de direitos universais e absolutos: o nazismo. Com o fim da Segunda Guerra, os males se apresentavam: uma imensa população havia sofrido detenção, desnaturalização, aprisionamento em guetos ou em campos, até mesmo deixada ao canibalismo.
Para que nunca mais tais horrores se repitam, os Estados participantes da Guerra fundaram a Organização das Nações Unidas (ONU); sua preocupação primordial, com a vida e dignidade humanas, está presente na sua Carta e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esses documentos têm ajudado a lutar contra opressões e guiado diversos países a desenvolver suas políticas, como na nossa Constituição de 1988.
Porém, nem sempre as pessoas se lembram da importância máxima do respeito a direitos como a liberdade de expressão; isso leva governos e movimentos a agirem, muitas vezes, contra garantias que protegem inclusive eles mesmos – pois agir contra os direitos humanos é um tiro no próprio pé. Veja a seguir alguns casos notórios na história.
Como você viu, a expressão humana é inerente à nossa espécie e tão antiga quanto ela; por isso, infelizmente a censura, em suas múltiplas faces, acompanha essa linha do tempo. A censura já foi exercida por diferentes setores da sociedade, de distintas formas. Um dos exemplos mais antigos é a censura às artes na filosofia de Platão, que as considerava “ilusionismo” e, portanto, mentira.
A questão é que a arte e a cultura estão atadas, assim como tudo que vivemos é cultural. Assim, de uma forma ou de outra, o que a arte apresenta nos faz refletir e questionar sobre o “mundo real”, fora das telas. Isso, para muita gente, era intolerável. É assim que por séculos a Igreja Católica manteve o Index Librorum Prohibitorum, “Índice de Livros Proibidos” – nele estavam autores como Newton e Galileu.
Na arte, até a pintura da Capela Sistina, o “Juízo Final” de Michelangelo, foi considerada censurável; afinal, nela havia nudez – algo que saltava mais aos olhos dos críticos, que pareciam “procurar pulga para se coçar”, que ao dos fiéis. Séculos depois, alguns críticos ainda iam às exposições somente para ver nudez e não arte: “A Origem do Mundo”, de Courbet, transmitia uma ideia – mas isso não importou, afinal, era a pintura de uma vagina.
Escândalos semelhantes a esse ocorreram com “Olympia”, de Manet – o motivo: a mulher nua no quadro, olhando “afrontosamente” o observador, era uma prostituta famosa na época. O pobre pintor provavelmente imaginava que ninguém se importava mais com isso – mesmo porque já havia se passado três séculos desde que Caravaggio chamava prostitutas para serem modelos de pintura.
Em geral, os escândalos e censuras são completamente contraprodutivos – quer dizer, têm o resultado contrário ao esperado: chamam ainda mais atenção a algo que gostariam de silenciar. Um exemplo contemporâneo disso, a China tem a anos tentado silenciar e invisibilizar o artista visual Ai Weiwei – cuja obra critica as violações aos direitos humanos no país; além da censura lhe dar visibilidade internacional, ela age como uma prova de que, de fato, lá se violam os direitos humanos.
Querer limitar o acesso de alguém a essa esfera é desumanização: basta nos lembrarmos quando isso já aconteceu no passado. Dois momentos emblemáticos da história podem servir como aviso do perigo da censura: o nazismo, que desumanizava judeus e outros mais, cuja censura no cinema e em outros meios logo se tornou genocídio; e na escravidão, onde censuras (como à vestimenta) assinalavam os escravizados como “menos humanos” (também usado pelos nazistas).
Todos devemos agir para evitar que, por desinformação ou má-fé, algumas pessoas ponham em risco o direito de todos, como a liberdade de expressão – inclusive delas próprias. Individualmente, sempre questionando apelos a censurar peças, teatros ou filmes; mas coletivamente, com projetos de crowdfunding. Na Evoé, projetos como Geração Borgeana e Fecha a Santa na Parada mostram que é possível agir em prol dos nossos direitos.
Não se deixe arrastar por essas questões, com as milhares de polêmicas e disputas nas redes sociais: cadastre-se na Evoé para receber as novidades! Você receberá textos que conversam com os assuntos mais pautados, sem polêmica, nem sensacionalismo – e o melhor: com as melhores soluções, as coletivas!
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