Hoje trazemos para você a entrevista que fizemos com a Isabela Paes e o Marcelo Souza e Silva, atores da Cia. Luna Lunera. O Luna, carinhosamente chamado assim, é um dos grupos de maior destaque no teatro contemporâneo feito no Brasil. Com 18 anos de estrado, o grupo foi fundado pelos estudando do Centro de Formação Artística do Palácio das Artes (o antigo CEFAR e atual CEFART) em Belo Horizonte. Lá eles criaram sua primeira espetáculo ‘Perdoa-me por me Traíres’, e hoje já acumulam 7 peças autorais para o currículo.
E por que falar deles aqui no nosso blog sobre crowdfunding? Simples. Eles criaram uma campanha na plataforma da Evoé junto com o grupo Os Contectores para levarem suas peças ao FITA (Festival Internacional de Teatro do Alentejo). As peças ‘Aqueles Dois’ e ‘Rosa Choque’ chegaram ao festival, passando por 5 cidades de Portugal. Foi a primeira vez que o grupo levou sua arte até a Europa, e isso só foi possível graças a ‘vaquinha online’ que fizeram.
Ao longo desse processo de financiamento coletivo eles aprenderam grandes lições para levar adiante, o que fazer e o que evitar. Então queremos compartilhar com vocês a experiência que eles tiveram com o crowdfunding aqui na Evoé. Mais do apenas contar a história deles, queremos transmitir para você as grandes dicas que fizeram toda a diferença durante a campanha do grupo.
Então vamos lá!
Primeiro vamos as apresentações:
Marcelo, também conhecido como Tchelo, é um dos membros-fundadores do grupo. Em suas próprias palavras: “Como integrante da companhia eu sou prioritariamente um ator. Mas aqui dentro a gente tem um trabalho muito compartilhado. Então em diversos momentos já exerci também função de diretor, co-dramaturgo, co-cenógrafo, co-figurisnista haha. Então a gente tem essa multiplicidade de olhar para o grupo, uma vez que somos os integrantes. ”
A Isabela é também uma membro-fundadora da Cia. “Sou atriz, e como o Marcelo já disse, aqui temos um método de criação onde horizontalizamos as funções e fazemos um processo colaborativo. Então os atores do Luna Lunera são atores, diretores, dramaturgos, produtores…”
Marcelo: Nós somos a Luna Lunera e agora em 2019 estamos completando maior idade. Já são 18 anos de atuação ininterrupta aqui em Belo Horizonte. Além disso já fomos a praticamente a todas as capitais do Brasil, e recentemente começamos a desenvolver um trabalho de internacionalização. Em 2015 começamos a apresentar espetáculos nossos, principalmente o ‘Aqueles Dois’, em espanhol e com ele fomos a alguns países da América Latina. Depois levamos um outro espetáculo pra fora, o ‘Cortiços’, pra França. Fizemos ele de um modo bilíngue, tendo cenas em português e em francês. Então pra gente é muito importante essa ideia de percorrer o mundo com nossos espetáculos. Percorrer o nosso país e ter esse contanto com culturas diferentes mas locais foi muito único pra gente. Foi muito interessante percebermos essas brasilidades expressas de maneiras diferentes por todo o país. Então esse reconhecimento do lado humano que nos compõem apesar de tantas diferenças – de nacionalidade, línguas – tem sido muito rico.
Marcelo: O ‘Aqueles Dois’ fala muito de afeto. Ele traz personagens que em meio àquele ambiente árido, se encontram e se reconhecem no afeto e em gostos comuns. Quando levamos esse trabalho pra fora, pra América Latina, tivemos uma experiência especial, pela diferença da língua. E mesmo assim, reconhecemos uma identificação muito grande das pessoas. Por exemplo, fizemos duas apresentações na Venezuela em um momento de crise imensa no país e foi lindo. Eles se reconheceram muito no trabalho e nos agradeceram por termos ido ao festival mesmo com tantos grupos de teatro tendo desistido.
Isabela: Acho muito importante dizer que não é apenas importante pro grupo levar esse espetáculo para a Europa pela primeira vez – já tendo um circuito importante pelo Brasil e na América Latina. Então a gente vê que ele tem potencial de realmente ter um caminho interessante por lá, de representar a arte brasileira por lá. Isso por si já é muito importante. Mas além disso é fundamental pra gente agora pensar no tema do espetáculo. Ele não só fala da questão da afetividade entre colegas de uma repartição, mas traz toda a questão da homofobia e do preconceito que começa a ser gerado a partir dessa relação. Uma relação vai tomando conta de um ambiente de trabalho, e vão criando reações em cadeia e… Bom, e por que isso é importante agora? Porque estamos em um momento de discutir isso muito aqui no Brasil. Estamos passando por momentos reacionários, onde direitos básicos, conquistados, garantidos, e acreditávamos que iríamos caminhar por um lugar cada vez mais de respeito e de igualdade, a gente vê um movimento contrário e a gente vai se sentindo mais acoado, mais com medo. Então infelizmente o ‘Aqueles Dois’ é uma peça que está ganhando em atualidade.
Uma peça que já tem 10 anos, e que a gente esperava que 10 anos depois esse tema já fosse ser pra falar como era no passado. E não. Ele está cada vez mais presente, da pior forma possível. Então a gente também acha importante levar isso pra fora. Falar do que está acontecendo no Brasil a partir de um espetáculo de teatro. E junto com a peça ‘Rosa Choque’, que é um espetáculo que fala da violência contra a mulher, que também tem crescido apesar de muita denúncia, apesar do levante feminista, e apesar de muita coisa bonita que a gente vê acontece. É como se sentíssemos que há uma onda contrária. A gente foi ganhando em respeito e em liberdade tanto nos direitos da mulher como para os homossexuais, e vários outros movimentos que vão ganhando essa liberdade de ser e de existe com tranquilidade, e ao mesmo tempo sentimos esse movimento contrário, reacionário. Então são dois temas importantíssimos de estarmos falando agora.
Marcelo: Acho que a gente pode inclusive expandir essas duas temáticas que os dois espetáculos trazem a fazer uma leitura a respeito da liberdade de ser e de estar no mundo de diferentes maneiras. E isso pode dar em qualquer tipo de relação e não apenas nessas colocadas. No Brasil a gente tem vivenciado isso. A arte tem sido colocada muito em cheque atualmente, e nós artistas temos sido muito criticados. Tem sido questionada a validade do nosso trabalho. E esse questionamento traz outros vários questionamentos por trás. O questionamento da sua capacidade de reflexão, da sua capacidade de crítica, da liberdade de ser e estar no mundo e da possibilidade de ter diferentes visões do que é viver. Do que é estar inserido em um país, em uma cultura, em uma nação. E acho que a gente tem vivenciado muito a perda da alegria na nossa sociedade. E esses espetáculos trazem isso também. Quando propomos na peça um encontro de almas, como fala Caio Fernando Abreu, o autor do conto homônimo, isso traz uma série de aberturas para o mundo. É uma abertura da sua visão de ser e estar e da forma como você pode se relacionar com o outro. Estamos vivendo momentos de muita padronização. Qualquer desvio de modo de vida para além do que está supostamente estabelecido é criticado, julgado, – muitas vezes com violência e em alguns casos até com morte. Então acredito que apresentar esses espetáculos é a nossa forma também de dizer não para esse sistema. De dizer que nós acreditamos em formas distintas de se viver, de exercer a cidadania e de estar inserido dentro de uma cultura.
Isabela: Estamos fazendo o financiamento coletivo pela primeira vez. Antes de explicar o porque disso, é importante a gente esclarecer que muitos festivais, até mesmo os grandes, têm a política de não dar as passagens áreas a equipe. Eles pagam o cenário, a produção e tudo que precisa para que a peça aconteça. Mas as passagens muitas vezes são dadas pelos governos de cada país. Existe já um hábito em diversos países de investir na cultura, de enxergar a exportação das artes como um investimento. E é de fato um investimento. Você está atraindo olhares, fazendo investimento turístico, intercâmbio artístico, contribuindo para o fazer artístico crescer, e educando seus artistas através da oportunidade de ver o que está acontecendo fora do país. É muito importante fazer parte desse intercâmbio cultural.
Sim. Nós sempre fomos à festivais participando dessa forma, alguns dando passagens e outros não. Existiam instâncias do nível municipal, estadual ou federal que apoiavam essas viagens para que os grupos pudessem participar de feiras ou festivais internacionais que tivessem relevância. Mas atualmente todos esses mecanismos estão suspensos nos três âmbitos. Então não temos mais como defender essa nossa candidatura junto ao governo. A ideia então foi convidar o público. Tem muita gente que acompanha o trabalho do Luna há algum tempo, que curte, que incentiva e que está junto. Então pensamos que podíamos dividir esse investimento. Estamos fazendo uma série de recompensar para convidar o público para conseguirmos juntos fazer o investimento dessa viagem.
Marcelo: Bom, o financiamento surgiu com a ideia de apresentar o espetáculo Aqueles Dois no FITA, em Portugal. Então pensamos, por quê não então atrelar esse financiamento aos espetáculos que irão viajar para este festival? Claro que existem diferentes formas de realizar o financiamento com as recompensas. Tendo dito isso, entendemos que a recompensa mais interessante seria o espetáculo, ou no caso, os espetáculos. Fomos conversando e a primeira ideia de recompensa foi a de compartilhar a peça com o público. Esses dois trabalhos já foram apresentados em Belo Horizonte e são trabalhos muito queridos pelo público daqui. Então entendemos que pode ser muito interessante compartilhar esses trabalhos mais uma vez. Só que agora através do financiamento coletivo.
Isabela: Então, pra concluir, por causa do financiamento coletivo, iremos apresentar os dois espetáculos aqui em BH, no dia 12 e 13 de abril no Minas Tênis Clube. (as peças já foram apresentadas no momento de publicação deste post).
Marcelo: Quando penso sobre esses processos, penso como eu enquanto espectador receberia. E penso que tendo uma recompensa que me coloca muito próximo do objeto de financiamento, me pareceria muito mais interessante. Percebo que quando a abordagem se relaciona mais diretamente com os espetáculos, a adesão vem de uma forma mais espontânea e empolgada. Ainda sobre as recompensas, tivemos algumas experiências bem inusitadas sobre a adesão do público em relação a uma recompensa em específico. Durante o espetáculo ‘Aqueles Dois’ nós fazemos alguns desenhos que têm haver com a dramaturgia da peça. Cada desenho é construído ao longo de cada espetáculo, em cena. E uma das recompensas é esse desenho emoldurado. Quando propusemos essa recompensa eu particularmente me perguntava se ela teria algum tipo de retorno. E foi um grande sucesso. O curso de produção cultural com a Cris Moreira que oferecemos como recompensa também começou a sair bem rápido. Além disso o Odilon Esteves está oferecendo fazer seu sarau literário na casa de quem apoiar, e inclusive já executou uma dessas apresentações.
(Se quiser mais dicas de recompensa veja esse post).
Isabela: Acho que ainda estamos aprendendo. É o primeiro financiamento coletivo que a gente faz. E por isso, tenho certeza que quando formos parar para avaliar os resultados percebermos coisas que poderíamos ter feito diferente. É uma aprendizagem, uma nova ferramenta. Um pensamento importante que tivemos ao atrelar os espetáculos como recompensa foi de pensar no que a gente está dando para a pessoa. Isso foi feito por entender que poderíamos chegar a uma saturação de todos os grupos de teatro precisarem fazer crowdfunding, já que estamos em uma situação complicada no país. Não estamos falando só de passagens. O grupos precisam também de fazer manutenção do espaço, montar novos espetáculos…
Isabela: Sim. Acredito que vai ter um crescente de demanda de financiamento coletivo. Então a ideia foi de não só pedir como uma ajuda mas de estar ofertando mesmo. Com uma contribuição de R$40,00 você já tem um ingresso. Com R$80,00 você já tem 2 ingressos mais um postal escrito à mão que os atores vão mandar de Portugal. Então se você pensar, é o mesmo preço ou até menos do que o ingresso. Então não é como se você tivesse contribuindo muito mais e vai ganhar só uma lembrancinha. Não. A gente realmente está trabalhando para estar junto. Por exemplo, oferecemos um curso de produção cultural como recompensa. Se você fosse comprar o curso a parte sairia muito mais caro. As apresentações do sarau literário do Odilon Esteves a mesma coisa. Então a gente inverteu a lógica. Ao invés de uma pessoa contribuir com muito e levar apenas uma lembrancinha, nós exercitamos o pensamento do que poderíamos oferecer com o nosso trabalho. O que damos de melhor. Fizemos isso para que tudo seja bem justo. Assim a pessoa tenha a sensação de que ela também está ganhando.
Marcelo: A ideia do financiamento é a gente resistir e trazer o público como um elemento de resistência. Não uma resistência pesada, mas uma resistência pelo belo, pelo vivo, pela alegria, pela arte, pela reflexão. Então acho que o caminho é muito menos a questão do valor. Nós não pedimos um valor alto pelas recompensas ofertadas. O foco deve ser no que se está fazendo ao criar uma campanha de financiamento. No nosso caso é falar que estamos participando de um projeto de levar o espetáculo pra outra cultura, outra nacionalidade, e queremos que você faça parte disso enquanto espectador.
Isabela: Acho fantástico você lembrar disso. Fazer o financiamento coletivo agora e começar a pensar ele como uma possibilidade é sim uma forma de resistir. É a única? Não. Nós vamos em diversas frentes, mas quando sentimos esse ataque aos artistas, ao fazer artístico, e vamos tirando as possibilidades de patrocínio e incentivo, o que nos resta? Fechar as portas? É uma possibilidade e para muitos grupos é o que vai acontecer. Não tenhamos ilusão. A situação está difícil, mesmo. Mas enquanto isso não é um imperativo, nós vamos pelo caminho contrário. Vamos tentar fazer ainda mais e mais para continuar. É uma sobrevida. Fazer além e juntos.
Isabela: Para começar precisávamos entender qual a nossa forma de fazer um crowdfunding. Decidimos juntos que não queríamos ter uma abordagem invasiva. Não queríamos chegar de amigo em amigo e cobrar a contribuição deles. E decidimos isso por entender que o momento é outro. Vários chamados foram e serão feitos, e cada pessoa vai se conectar afetivamente com eles de uma forma. É um momento para sentir a recepção do público pra então entender se devemos seguir com essa abordagem. Entender também se devemos usar a ferramenta de financiamento coletivo para outras frentes. Talvez para manter o espaço da sede do grupo. Vimos também que um post mais pessoal pode ter mais efeito. É o caso do post que o Gui fez – integrante do grupo Os Conectores-, em que gravou um vídeo no seu quarto tocando violão.
Temos a entrevista em formato de vídeo. Dá uma olhada e aproveita pra conhecer nosso canal do youtube. Lá tem vários vídeos pra você 😉
Por hoje é isso. Espero que tenha gostado de conhecer esses artistas incríveis. Se quiser saber mais sobre o financiamento coletivo no mundo cênico fica ligado aqui no blog.
Já conhece a Evoé? Entre aqui e saiba mais sobre financiamento coletivo.