Conversamos com o Paulo Vitor (PV), criador do projeto Seu Vizinho sobre a celebração anual da Consciência Negra e a raça como ponto de partida do processo criativo.
Vem conferir!
Eu sou o PV, Paulo Vitor Ribeiro, nascido e criado na Vila Marçola, no Aglomerado da Serra, eu sou irmão do Diego Chassi, Babi Ribeiro e da Núbia, minha irmã mais nova. Todos nós tocamos no Seu Vizinho, ajudamos no projeto como um todo e isso não é nepotismo, é organização familiar favelada. A gente começa com quem tá próximo e com quem vai abraçar o rolê.
Nós somos filhos da Maria, uma mulher negra e professora, sendo a primeira professora de uma escola estadual aqui do morro, já o meu pai, Paulo Osvaldo, é pintor de construção civil aposentado. Eu gosto de falar da minha família pra me apresentar, isso é porque eu sei que se minha mãe não fosse essa mulher potente, eu não seria quem sou hoje.
Eu estudei em escola pública aqui no morro, mas depois estudei em escola particular, fiz a quinta série até o meu terceiro ano do ensino médio através de bolsas, e isso fez muita diferença na minha formação, me fez ver coisas que eu não via, me deu oportunidade de circular por partes da cidade que eu não circulava. Algum tempo depois eu entrei para a faculdade, no curso de engenharia de produção, nada a ver com música, mas, com muita relação com o que eu faço hoje no Seu Vizinho. Eu estou quase concluindo meu curso, falta bem pouco, já fiz até o TCC, mas por questões pessoais e problemas que pessoas negras de favela precisam resolver, eu acabei demorando mais pra concluir minha graduação. Durante esse processo, trabalhei em empresas de consultoria e engenharia, mas fui vendo que não fazia muito sentido pra mim, eu vivia trabalhando para pessoas ricas ficarem mais ricas, e muitas vezes, fazendo coisas que destroem o meio ambiente.
Paralelamente, eu sempre gostei muito música, lá em casa a gente sempre cantou em coral, já tínhamos bandas com amigos, e fomos escoteiros (ser escoteiro é algo muito importante). Bem cedo eu me envolvi com baterias de carnaval da cidade, mas eu não via meus vizinhos descendo do morro pra colar no carnaval, eu até chamava, nós tínhamos alguns instrumentos que usávamos no samba do campo de futebol do morro, mas a galera não ia, não tinha gente da serra. Alguns blocos já tinham passado por aqui, mas faltava um bloco do morro e pra galera do morro. Foi aí que eu tive a ideia: “Bora criar um bloco”, e então montamos um bloco, fiz uma página no facebook chamada “Seu Vizinho”, até falei que podíamos mudar o nome, cor e tal, mas agora já tava exposto pro mundo (risos).
Tudo começou no final de 2014, pegamos os instrumentos da família, chamamos os amigos, e saímos pela primeira vez na rua em 2015. Foi aí que a gente viu que tinha muita gente fora do “Serrão” na bateria, a galera curtia mas não tocava, e a gente queria o morro no protagonismo. Com isso, nós decidimos montar uma oficina de percussão, aí a galera poderia treinar ao longo do ano e sair tocando no ano seguinte.
Em 2016 e 2017 nós já saímos com a galera do morro tocando, a oficina de percussão nunca parou, só chegaram outras; oficina da terceira idade, oficina de teatro, cinema, cavaquinho, flauta e tudo que você pensar. Tem muita coisa pra fazer, a galera tem e sempre teve vontade de fazer, é tudo com muita garra.
Eu comecei a falar de mim e entrei no Seu Vizinho, é algo que está muito junto, mas que eu venho tentando separar. Eu sou o PV, e o Seu Vizinho é o Seu Vizinho, ele precisa existir para além de mim, quero o projeto com muitos anos apesar de mim, sabe? Mas hoje eu reconheço que muito da história do Seu vizinho está ligada na minha história e na história das pessoas que fazem esse “corre” existir. O Seu Vizinho vai mudando a gente, e a gente vai mudando o Seu Vizinho.
O Seu Vizinho vai me constituindo e eu vou contribuindo para ele ser o que é. Primeiro que o Seu Vizinho que me mostrou que eu era negro, favelado eu já sabia, mas eu não percebia as questões de ter uma pele negra.
PV (Seu Vizinho).
Quando o Seu Vizinho começou a ser o que é, ele foi ganhando uma cara de empreendedorismo e eu vi várias barreiras. Eu fui enxergando o tanto que o b.o era mais complicado pra gente. Eu fui em algumas formações onde a galera dava palestra sobre processo criativo para inspirar, basicamente eu via pessoas falando: “ah, eu tirei um ano sabático e viajei o mundo para buscar referências, foquei em criatividade e deixei o trabalho de lado por um ano”, “ah, eu fui pra disney e vi um brinquedo com muita tecnologia e fiquei inspirado para começar uma startup”. Eu percebi na hora que aquilo era inviável, eu só sabia pensar: “quem na favela consegue fazer isso?” e eu percebi que ninguém. Eu sabia que aquilo não era pra gente, ou era pra gente e passou a não ser porque o esforço é imenso.
Em uma das formações, um cara muito massa falou assim “levanta a mão quem tá aqui sem receber”, só os empreendedores negros e favelados levantaram a mão. No fim das contas, os únicos empreendedores que investiram tempo naquilo era a gente, só quem era preto, pobre e favelado. A galera que ia lá na frente falar recebia por aquilo, e ninguém tinha lugar de fala. O critério de sucesso não conversava com nossa realidade, falar de empreendedorismo favelado é sobre ouvir quem mora na favela, passa esses perrengues e faz o “corre”!
Todo mundo que sente o racismo precisa ter uma forma de sobrevivência, a minha é o Seu Vizinho, é ir pelo caminho que acredito, arte, educação, cultura, geração de renda em território próprio.
Tem gente que fica muito bolado e faz música dando a real, temos exemplos, olha o Djonga aí. Tem gente que vai pras artes plásticas, há quem monte empresa e quer chamar a galera pra trabalhar junto, mas o que eu acho que pega muito, é a quantidade enorme de esforço a mais, para gerar os mesmos resultados. Não dá pra comparar com as pessoas que tem vários contatos, várias fontes de renda e vários investimentos. Então, a galera que empreende no morro é uma galera corajosa, tiro o chapéu e dou a maior moral, eu ainda estou no lugar de homem, né, mas pensa nas mulheres que empreendem no morro, na galera trans, como que fica nesse rolê? Tem vários recortes.
Eu confio muito que nós somos um grande ecossistema, se eu tô mal lá em casa com minha família, isso vai reverberar no meu trabalho, sabe? E o ser humano é muito complexo e muito amplo, então a cor, a raça, a pele, o nariz, o cabelo, isso tudo conta muito. Mas é claro que existem outras coisas que contam também, o gênero, idade, lugar onde nasceu, estudou, até o gênero, sabe? Um cara preto que anda de mão dada com uma mulher branca é visto de outra forma, isso é muito doido. Eu acho que a questão da raça e minha cor influencia totalmente e diretamente no que eu faço, influencia pra eu ter mais dificuldade pra algumas coisas, mais entendimento de outras, e também para acessar lugares e pessoas que pessoas brancas não podem acessar ou não vão entender.
Mas é importante saber que existem formas de lidar com isso, sabe? Eu tenho trabalhado na minha terapia, inclusive acho que é um privilégio o meu acesso à terapia, tento sempre trazer de graça pra galera do morro, porque é uma coisa de doido, falar de saúde mental aqui é falar de coisa de rico, e a gente precisa muito disso. Eu me pego pensando que muitas vezes eu lidei com muito ódio e veneno, essa estrutura de racismo e desigualdade me gerou muito ódio, em alguns momentos eu até fiz música, aqui no Seu Vizinho a gente tem um um hino chamado “Serra Resiste”, é mais ou menos assim:
“Eu vou, descendo a ladeira..
fazendo zueira, eu quero embrasar,
respeite a nossa cultura, nossa carne é dura.. de colonizar.”
Hino (Seu Vizinho), Aglomerado da Serra, Belo Horizonte, 2021
Então tipo assim, a galera não vai colonizar a gente mais, isso foi uma coisa muito legal e que foi importante, mas em alguns momentos eu fui muito violento, eu fiquei nervoso e eu tinha ódio do contexto, por isso eu tenho trabalhado para não deixar a estrutura me desestabilizar e me tirar de uma luta que tenha impacto.
Algumas pessoas acabam travando, há quem diga que não consegue fazer algumas coisas por conta da raça, “eu não consigo fazer isso porque eu sou negro”, eu respeito isso, e acho que a gente só desenvolve na conversa. Nós somos um conjunto de fatores, e dentre eles a raça pesa muito, é crucial, se nossa sociedade não fosse tão racista, talvez pesasse menos.
Primeiro, eu acho que a gente tem que conseguir falar disso sem tabu, é preciso trazer pra conversa sim, existe racismo sim, pra caralho, e se a gente não falar disso não tem razão. O que eu gosto de trazer pra perspectiva, é falar do negro sem falar só do sofrimento, bora valorizar o negro, bora valorizar a cultura e o corre do negro, isso é a missão do Seu Vizinho, tá explícito, a gente quer valorizar e reconhecer a cultura periférica e negra. Então, se os coletivos, imprensa, colégios e organizações colocam na sua missão que é importante combater o racismo, a galera começa a entender que essa é uma responsabilidade coletiva, pra mim um dos caminhos é esse.
Outra coisa que penso é buscar valorização negra no dia a dia, sabe? Hoje dentro da biblioteca do Seu Vizinho, a gente prefere livro feito por negros e para negros, não porque eu não gosto da literatura branca, mas porque a gente precisa ter contato com algo que faça sentido pra nós, existem brancos lançando literatura o tempo todo, mas e nós? Então quando você se posiciona pra valorizar o que é negro, as coisas mudam. Um exemplo disso são as cotas, eu sou super a favor, porque embora não resolva o problema, dá oportunidade pra gente ter outra perspectiva.
E pra finalizar, é entender como as ações do dia 20 vão se perdurar pro resto dos dias, a gente que é negro, é negro o ano inteiro, então bora pensar em ações concretas e que nos atendam e representem o ano todo, não apenas na consciência negra. Assim fica mais potente, precisa criar raiz, semente, fruto e chegar em outras pessoas.
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